Entrevista sobre paciência no trabalho

Entrevista sobre paciência no trabalho
Warren Keelan | The Great Beyond (2015)

Antes da pandemia de Covid-19 chegar ao Brasil, fui entrevistado para o blog da Sputnik.Works (criada a partir da Perestroika). Como a prática da paciência não se restringe ao mundo corporativo, talvez algo do que indiquei possa ser útil para você em nosso momento atual.

Fiquei super feliz pelo convite, respondi longamente e a querida jornalista Juliana Lima foi muito profissional e generosa em sua edição. Porém, claro, como o texto depois passa por outros filtros e interesses, acabaram escolhendo não usar algumas respostas, além do trecho final, onde explicitei a maquiagem que visualizo como o cerne do sofrimento na relação entre bem-estar humano e ambiente corporativo. Portanto, resolvi publicar também aqui, na íntegra.

Ainda que as melhores empresas perguntem “Como posso cuidar melhor das pessoas?”, é como se não quisessem a resposta inteira. Pois a resposta inteira coloca na mesa não só a empresa como um todo, mas toda uma cultura — inseparável de leis, contratos, algoritmos e hábitos coletivos — que podemos chamar de capitalista ou materialista ou, se quiser algo mais preciso: a inteligência que prioriza a acumulação do que Lama Padma Samten chama de “riquezas compráveis”, não a apreciação da vida, das relações e das qualidades da mente. Tal visão causa o que talvez sejam nossos dois maiores problemas: a destruição ambiental e a desigualdade social. Não é pouca coisa o que está em jogo.

O seu trabalho é um verdadeiro convite à transformação de si mesmo e do melhor relacionamento com o outro e com o mundo. O que significa essa transformação pra você quando a gente fala sobre o ambiente de trabalho?

O grande engano que vejo nas empresas é individualizar problemas coletivos, ou seja, exigir transformação pessoal enquanto sustenta estruturas aprisionantes. A empresa contrata, por exemplo, uma palestra minha sobre felicidade genuína e meditação, mas não dá a tarde livre para as pessoas. Estou lá falando sobre a micro apneia que acontece quando checamos emails, sobre a importância de relaxar e respirar livre das tarefas, mas a pessoa está preocupada com o que fará a seguir. 

Você cria um ambiente de tensão e diz: “Relaxe, faça mindfulness!” Ou seja, a grande mensagem é “Se vira, mude você, nós não vamos mudar”. Gregory Bateson chama esse processo enlouquecedor e traumático de “duplo vínculo”. Se questionadas, as pessoas mais importantes na corporação frequentemente dizem: “Ah, mas todo o mercado funciona nesse ritmo.” Não é verdade: podemos fazer diferente, podemos escolher não reagir e implementar uma nova atmosfera. Há incontáveis exemplos de empresas que experimentaram reduzir o trabalho para 4 dias por semana ou para 6 horas por dia. E a tal da “produtividade” até aumentou

Outro exemplo: a empresa contrata um workshop sobre empatia ou, melhor ainda, sobre compaixão nas relações, enquanto sustenta um ambiente de competição diária por meio de dispositivos de avaliação e recompensa. Nesse caldeirão de competição, cada pessoa agora precisa entender o mundo do outro, não competir, ajudar… Mas se a própria empresa fizesse isso, não precisava de palestra sobre felicidade e nem de workshop de compaixão. O dinheiro poderia ser investido em aumentar os salários, reduzir carga horária e visar um lucro menor, crescendo e produzindo menos, por que não? Por que é um absurdo focar mais na vida do que no capital?

Se a empresa quer mesmo o bem-estar dos funcionários e do mundo ao redor, ela realmente precisa mexer no seu principal negócio, não adornar o problema com eventos e palavras bonitas. Ou seja, se ela produz refrigerante, que sempre faz mal para seres humanos, a maior compaixão seria parar de produzir. Se ela cresce a ponto de destruir rios, idem. E se ela quer mesmo introduzir compaixão, sua diretoria deveria aumentar os salários, no mínimo. É o que se pede de Jeff Bezos, por exemplo, diante da violência que é a vida de quem trabalha em depósitos da Amazon.

Sobre a uberização do trabalho, recomendo o novo filme de Ken Loach (Você não estava aqui) e o livro Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, de Tom Slee. E, para quem se interessa por empresas mais humanas, recomendo três livros: Um coração sem medo, de Thupten Jinpa, A revolução do altruísmo, de Matthieu Ricard, e The mind of the leader, de Rasmus Hougaard.

O que para você representa ser realmente paciente em um mercado de trabalho onde a ansiedade impera e todos estão sempre desesperados para ser bem-sucedidos o mais rápido possível?

A essência da paciência é a não perturbação. Não é bem ficar sustentando uma paciência, pois como diz a expressão popular, “paciência tem limite”. Se você tem paciência, você rapidamente a perde. Um de meus professores, Lama Padma Samten, sempre brinca que a maior paciência é só não ter impaciência, ou seja, seguir sem se perturbar.

Paciência em tibetano é zopa (existe até um grande professor chamado Lama Zopa Rinpoche). E a essência da paciência, a sua verdadeira natureza, é a não perturbação, a quietude imutável e ao mesmo tempo aberta aos movimentos incessantes da vida. Em tibetano, imperturbabilidade é mingyur — há também um grande mestre, um de meus professores, que se chama Mingyur Rinpoche. Dele recomendo todos os livros e esse curso online.

Nós confundimos imperturbabilidade com indiferença, mas isso é um engano. Na verdade, quanto mais irritáveis somos, mais precisamos nos proteger em casulos. Por outro lado, quanto mais imperturbáveis, mais deixamos o mundo nos tocar, como faz a terra, o céu ou o espaço ao nosso redor: seguem imperturbábeis e por isso sempre acolhendo, apoiando, se deixando tocar.

O que você faz para trabalhar a sua paciência dentro e fora do seu ambiente de trabalho em sua rotina pessoal?

A paciência pode começar a ser cultivada por três grandes abordagens: a do equilíbrio, a da sabedoria e da compaixão.

Pelo equilíbrio, você pode começar cultivando relaxamento e estabilidade pela prática de shamatha (“calmo repousar)”, que existe há milênios como um recurso mental em nossa família humana, antes mesmo do Buda surgir. A palavra “meditação” é um tanto problemática. Em tibetano, usa-se gom, que significa apenas uma intimidade ou familiaridade com a mente e com a realidade (com a impermanência, por exemplo). E em sânscrito, usa-se bhavana, que significa apenas cultivo, treino, florescimento de alguma qualidade natural da mente.

Há diversos métodos que levam uma capacidade de não reagir e se manter imperturbável, ainda que com a mente aberta e conectada com toda a amplitude de seres e experiências. O objetivo dos métodos de shamatha é aprofundar nossa capacidade de integrar quietude e movimento, sem ficar indiferente (fixado na quietude) e sem ficar desesperado (fixado nas condições externas). Normalmente combinamos práticas de estabilidade com práticas de sabedoria, pelas quais ampliamos nossa visão, e de compaixão, pelas quais abrimos o coração e pacificamos as relações. Desse modo, a paciência nasce de modo progressivo e natural.

Além disso, nas abordagens mais ligadas à sabedoria e à compaixão, há uma paciência mais profunda, que é parar de lutar contra a natureza impermanente, não resolvível e insubstancial dos fenômenos. A verdadeira paciência nasce da compreensão de que você nunca vai de fato ser bem-sucedido na trajetória pessoal que você chama de “carreira”. Você nunca, de fato, vai virar alguém, pois sua natureza é livre. Isso é assustador! Nós queremos enfim ser alguém, sermos amados por alguém, termos algo para agarrar… Queremos uma narrativa, um propósito pessoal, um legado, uma riqueza acumulada, uma coleção de fotos, livros, memórias e experiências. No entanto, pelo poder da interdependência, nossa vida nunca consegue ter sentido sozinha, apenas na conexão com as outras vidas. Uma mente autocentrada está tentando algo impossível, então sempre sofre. 

A maior paciência vem de se abrir para essa realidade além das nossas estratégias de sucesso pessoal e além de nossas narrativas, conceitos, teorias, opiniões e pensamentos sobre a vida. É uma paciência de começar a relaxar na incerteza, sabendo que não há como nem onde se agarrar. Eis a diferença entre uma pessoa que se diz em um momento de transição, esperando para enfim relaxar num novo platô, e a pessoa que entendeu que sempre estamos em transição, que a vida é isso e não há platô seguro possível. A primeira pessoa sempre vai perder a paciência, pois sua visão não dá conta do dinamismo da vida. E a segunda pessoa começa a não se impacientar tanto, ao relaxar no próprio desconforto de não saber direito onde está, quem é, quem são os outros e o que está acontecendo. Ela é mais flexível. Ela erra, se frustra e não tenta logo escapar desse lugar de não saber. É essa abertura a fonte da verdadeira segurança: uma comunicação constante com o dinamismo e com a complexidade das situações.

Sobre isso, recomendo os livros Quando tudo se desfaz: orientação para tempos difíceis, de Pema Chodron, O poder de uma pergunta aberta, de Elizabeth Mattis-Namgyel. E 3 podcasts que gravei recentemente ao lado de queridos amigos praticantes (não deixem de assinar o podcast Coemergência!):

“Como viver uma vida com sentido” (sobre autocentramento e compaixão)
“Coemergência: existe algo lá fora?”
“Vacuidade: a natureza aberta da realidade”

Sobre o que eu pratico, é isso: métodos de shamatha, sabedoria e compaixão que aprendi com Lama Padma Samten, Lama Alan Wallace e Mingyur Rinpoche, entre outros grandes professores com quem tive algum contato nos últimos 15-20 anos. Não me considero um ser paciente. Rapidamente me irrito, pergunte para a Isabella Ianelli, com quem sou casado. Ela não só vê minha impaciência, como sabe a origem da paciência, afinal é formada no programa Cultivating Emotional Balance e oferece online o curso das emoções

É raro, mas de vez em quando surge alguma calma, algum amor e alguma sabedoria… Fica mais fácil dar todo o tempo do mundo para algum ser e não me perturbar tanto, mesmo diante de algo que está complicado. Alguns segundos de uma mente ampla é o suficiente para ganharmos confiança de que somos essa consciência livre e espaçosa. Não somos a irritação.

Quais gatilhos desencadeiam a perda da calma que precisam mais da nossa atenção?

Essa ideia de “gatilho” é muito perigosa. Pode dar a entender que há algo realmente perturbador, sendo que é nossa mente que se perturba. Parece mais inteligente tentar se proteger descobrindo o que é realmente perturbador e então criando um casulo de proteção, um “safe space”, como se encontra muito na cultura dos EUA. Mas o verdadeiro espaço seguro é a natureza livre da nossa mente. Essa abordagem do “gatilho” é desempoderadora: ela dá o poder para que muitas coisas nos arrastem. Ela nos tira a curiosidade que leva à descoberta de nossa bondade fundamental, que é nossa maior força.

Claro, em situações de muita fragilidade, a melhor coisa é se afastar daquilo que parece ser a causa do sofrimento. Não vamos chegar em uma pessoa que foi vítima de violência e dizer que ela está causando o sofrimento. Não, pelo contrário, nesse momento é muito benéfico a pessoa não se culpar e entender que ela não fez nada que causou o sofrimento, que a violência foi do outro. Como vemos em grupos de apoio, precisamos lutar para que essa violência acabe!

Porém, assim que a pessoa melhora, se ela realmente quiser liberar as causas do sofrimento pela raiz, começando com pequenos sofrimentos, pequenas irritações, a melhor visão é entender que é a sua mente que se perturba desnecessariamente, que a causa da perturbação não é bem externa. Mesmo quando há algo imensamente errado na sociedade, não ajuda se tentarmos mudar o mundo com uma mente perturbada. Chegamos fracos e reativos diante dos problemas.

Descobrir que a causa do sofrimento é interna é empoderador! Isso não significa dizer que a causa é individual, mas que é sustentada também pela nossa mente por meio da cultura. Não é uma abordagem passiva, mas muito vigorosa, enérgica, firme. Paramos de apontar dedos e podemos transformar nossa mente, nossa visão, nossa atitude, nossas relações. Essa é a melhor posição para transformar os sofrimentos coletivos e construir um outro mundo. Qual mente é mais poderosa para acatar as bases da desigualdade social, por exemplo? Uma mente reativa ou uma mente estável? 

Essa transformação envolve parar de lutar com o nosso sofrimento. Envolve usá-lo como combustível: entender que ele é coletivo, gerar compaixão a partir dele, sabedoria a partir dele, estabilidade, relaxamento, energia para ações transformadoras em todas as direções… Abre-se todo um caminho a partir dessa relação mais lúcida com nossa revolta diante de tantos problemas sociais.

Sobre isso, sugiro o texto “As duas causas mais profundas de nosso sofrimento” e uma palestra que ofereci para pessoas que habitam o mundo corporativo: “Quatro pontos cegos de nossa cultura”.

Todo mundo quer ser feliz, mas como a gente começa essa jornada a partir da dor de não conseguir esperar por nada, de querer pular etapas para conquistar as coisas mais rápido?

A gente pode começar se cansando. Se você recebeu boas condições, você já deve ter tentado de tudo: livros, cursos isolados, estados alterados, sexo, viagens… Você pode ter melhorado, mas está realmente contente com uma versão atualizada de suas confusões e aflições? Veja como todas as felicidades que você teve foram condicionadas. O namoro que mais te fazia feliz foi o que mais te deixou sem conseguir dormir, respirar, comer por semanas ou meses. E assim por diante.

Enquanto não transformarmos nossa mente, vamos sempre ficar autocentrados, reativos, sérios dentro de bolhas e identidades posadas… Ficamos tão ocupados que mal nos sobra tempo para olhar para as pessoas que mal estão conseguindo sobreviver e agir energicamente para transformar a desigualdade social, por exemplo. Mesmo com tantos privilégios, nunca de fato encontramos a felicidade, pois estamos buscando no mundo impermanente das aparências. Uma mente feliz não é uma mente que se fixa em experiências específicas, mas uma mente livre, capaz de soltar o apego e a aversão a qualquer experiência. Além disso, estamos buscando de modo individual! Felicidade é uma mente aberta, com compaixão, sabedoria e estabilidade naturais. É por isso que ela implica na felicidade dos outros ao nosso redor. Não podemos descansar enquanto houver sofrimento do outro lado da rua.

Esse cansaço diante das tentativas autocentradas de ser feliz vai nos levar a uma maturidade. Vamos começar a ver o limite de entender, ler, ouvir palestras, saber explicar, fazer terapia… E vamos começar a querer algo mais radical: trabalhar diretamente com nossa mente usando métodos em primeira pessoa. Pode ser então que nosso eurocentrismo se evidencie como uma ignorância e comecemos a nos interessar pelos grandes sábios de nossa família humana, em vez de ouvir empresários que tiveram apenas algum sucesso e hoje falam sobre felicidade e sentido da vida, como se tivessem alguma sabedoria. Há muita gente perdida ouvindo empresários como Jeff Bezos ou Elon Musk sobre algo que eles desconhecem: ser feliz não é acumular dinheiro, fama e poder, mas superar a mente do autointeresse e dedicar a vida para aliviar o sofrimento dos seres.

Como controlar os nervos no ambiente de trabalho trabalhando a paciência para não explodir a cada situação estressante?

Você precisa de um contexto. Técnicas isoladas são muito limitadas. O contexto inclui investigar as causas do sofrimento, ficar íntima da operação mais sutil de sua mente, descobrir os métodos de cultivo da mente que não se perturba tão facilmente, se aproximar de professores e da praticantes desses métodos… e praticá-los! Precisamos ir além de posts, livros, vídeos, cursos e podcasts.

Recomendo especialmente que você supere qualquer traço de arrogância e valorize as tradições de sabedoria de nossa família humana. Aproxime-se de grandes seres de lucidez e compaixão. No meu caso, por exemplo, comecei mirando em Sua Santidade o Dalai Lama e fui vendo quem está mais próximo nessa linhagem, como o professor Alan Wallace e Thupten Jinpa, que são alunos direto de Sua Santidade o Dalai Lama.

Com o tempo, as práticas formais nos ajudam a aproveitar todas as experiências para gerar a motivação, a aspiração, o desejo profundo de aliviar o sofrimento e apoiar o florescimento de todos os seres vivos. A partir dessa mente, nossas ações acontecem criativamente cada vez mais nessa direção. É por isso que não podemos separar a prática da meditação de um natural engajamento ético, ecológico, social e político, que são termos variados para a inteligência de cuidado com tudo o que é vivo.

Como encontrar a felicidade no trabalho em meio ao caos, trabalhando o que você chama de mundo interno?

Não há felicidade “no trabalho”. Há uma mente que se abre em qualquer lugar, com qualquer ser, a qualquer momento. A felicidade do trabalho naturalmente vem quando a pessoa percebe que ela não está no trabalho. Ela está no mundo o tempo todo, não é mesmo?

Nenhuma empresa tem existente inerente, com um núcleo sólido. Do mesmo modo, ninguém é realmente chefe, funcionário, cliente… As pessoas se perdem achando que estão mesmo em uma empresa, por isso se alegram ao serem admitidas e sofrem com a demissão, mas se fazemos da compaixão o nosso verdadeiro trabalho, nunca seremos demitidos.

Não existe algo localizável que possamos chamar de empresa. Participo de uma pequena empresa e sei bem disso. Aliás, foi perdendo a vida e a humanidade de vista que permitimos que a manutenção de uma corporação se tornasse mais importante do que o cuidado com a vida. Temos de acabar com essa “pejotização” da vida! É como se para algo existir tivéssemos de transformá-lo em uma empresa. Até pessoas estão migrando suas vidas para o status de empresa: a pessoa cria marca para si mesma, faz campanhas publicitárias, trata a si mesmo como um negócio… Tem até esse nome: “EUpreendedorismo”. E isso é admirado, pensa! Vivemos uma espécie de loucura nessa hiper valorização da corporação e da lógica financeira em vez de valorizarmos a vida.

Com o tempo, vai surgindo uma dignidade e ela inverte todo o processo de seleção: “Será que essa empresa me ajuda a beneficiar os seres? Será que sou mais útil dentro ou fora dessa empresa?” Para isso, é preciso que as pessoas fortaleçam o tecido social, que sentem em roda, ouçam seus obstáculos e sonhos, que se ajudem mais, a ponto da pessoa ser nutrida pela comunidade e não precisar trabalhar por um salário, mas para trazer benefícios. Isso não é simples, pois precisa ser feito coletivamente, caso contrário vamos fazer em um grupinho e as pessoas vão continuar sem moradia, topando qualquer trabalho precarizado para sobreviver. Precisamos ser mais visionários, andar com esse horizonte amplo, não aceitar migalhas de mudanças, não negociar diante de condições tão limitadas. Não é por acaso que muitas pessoas começaram a entender o valor de sindicatos, cooperativas, coletivos, redes e até mesmo de greves e do próprio Estado como apoio para chegarmos em uma dignidade básica: todo mundo com educação, moradia, alimentação e saúde, sem precisar ter “emprego” e ter “dinheiro” para ter sua existência validada.

O que as pessoas podem fazer fora do ambiente corporativo para conseguir trabalhar a paciência que precisam no dia a dia de trabalho?

Há práticas bem simples para ampliar sua paciência a partir do amor e da compaixão. Algumas começam quando reconhecemos uma paciência natural surgindo em nossos momentos mais cotidianos. 

Para reconhecer como você já tem compaixão, por exemplo, observe como você nunca desiste ou joga no lixo a louça suja. Você a limpa, mesmo que demore. Por quê? Ao mesmo tempo em que lida com a sujeira, você sabe que o vidro, a cerâmica, a pedra sabão, o aço inox não estão verdadeiramente sujos. Há algo que segue limpo mesmo enquanto está sujo. A sujeira não chegou a se misturar com a porcelana. É apenas por isso que podemos limpá-la — porque ela já está limpa! Do mesmo modo, a compaixão vê o sofrimento das aflições, enganos e ações negativas sem congelar os seres. Eis a origem da paciência: você trabalha, leve o tempo que levar, para que cada ser possa se liberar do que o aprisiona, sempre sabendo que todo sofrimento é atravessável, trabalhável, liberável, limpável: o outro não é aquilo, o outro é livre. Quem vê assim é a mente da compaixão.

Para reconhecer o amor, observe uma mãe com um bebê: na maioria das vezes, ela manifesta uma natural paciência pois sente que ele é um ser em processo — e todos nós somos seres em formação! Uma professora de música vê o aluno mal conseguindo tocar e, ainda assim, reserva um teatro inteiro para a apresentação de fim de ano. Por que ela faz isso? Porque ela vê o potencial de florescimento e imagina, sonha, adivinha o que o outro vai se tornar. Isso é amor: desejar que o outro seja feliz e manifeste as causas da felicidade, agindo como apoio para que isso se realize.

Quanto mais amor e compaixão você manifestar, mais natural será sua paciência.

Esses dias vi uma foto de um motorista de Uber que tentou se proteger do COVID-19 criando uma bolha de plástico ao redor de seu banco. É bonitinho e triste ao mesmo tempo. Fica impossível julgar ou tirar sarro. Contemple: todos os seres buscam por aquilo que consideram felicidade e evitam o que sentem como sofrimento. Claro, muitos estão enganados, sem saber as causas do sofrimento e da felicidade, criando ainda mais sofrimento ao tentar fugir do sofrimento. Contemple como eles fazem isso o tempo inteiro, mesmo enquanto piscam, mudam de posição em uma cadeira ou roubam alguém. É inevitável que o seu coração se abra: sim, eles são como você. Eles são como bebês… Como é que você vai se irritar com um bebê? Isso não significa validar ações negativas, mas não se perturbar tanto, principalmente quando precisar intervir de modo enérgico para impedir a ação negativa.

Quando você estiver com raiva ou encontrar alguém com raiva, uma prática tradicional e bem simples para se conectar com o verdadeiro movimento dos seres é pensar: assim como eu, os seres sentem raiva; assim como eu, os seres ficam desconfortáveis com a raiva e desejam transformá-la; assim como eu, a natureza mais profunda de cada ser é bondosa, então eles podem ser felizes. Desse modo, você vai ampliar seu desejo autocentrado de ser feliz para um desejo altruísta de que todos os seres sejam felizes. Se você abrir esse olhar, isso é amor, um dos caminhos mais naturais para a paciência. É a compaixão e o amor que fazem a professora de música não se irritar com cada erro dos alunos… Se você olhar com amor e com compaixão, você não precisa nem se preocupar em “ser paciente”.

Pra terminar, é mesmo humanamente possível manter a calma em meio ao caos corporativo diário?

Sim. Por um lado, precisamos transformar o ambiente de trabalho. Ele não precisa ser tão violento, tenso e competitivo. Em paralelo, ao mesmo tempo, podemos relaxar na sabedoria de que sempre haverá algum nível de caos e conflito ao nosso redor. A vida não se resolve. Não importa o que aconteça, a qualquer momento, em qualquer situação, podemos soltar a rigidez no corpo, destravar a respiração, ampliar a visão e abrir o coração. Isso é sempre possível. Nenhuma situação realmente consegue nos tirar esse poder. Até mesmo uma mãe que perde o filho pode descobrir a força inacreditável da compaixão

Porém, não basta só você fazer isso. É preciso criar condições para que mais e mais pessoas possam florescer. E isso, incrivelmente, inclui aumentar os salários, reduzir carga horária, crescer menos e fazer de tudo para acabar com a concentração de renda e com a destruição ambiental. Não são coisas separadas. Mais do que oferecer sessões de mindfulness e comunicação não-violenta, as empresas precisamos mudar todo o seu funcionamento.

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