Não há nada lá fora

Não há nada lá fora
Cena de "Inception" (2010)

Ao sair de casa não saímos de nossa mente: a cidade nasce inseparável de nosso mundo interno

Desde que li As cidades invisíveis (aqui um longo ensaio que fiz nesse estudo), obra-prima do escritor italiano Italo Calvino, tenho certeza de que nós não andamos em calçadas, linhas de metrô, casas e restaurantes. Percorremos mundos sutis.

Para uma amiga, por exemplo, a rua Maestro Cardim nasceu quando sua filha ficou internada em um hospital ali. O local antes ignorado ganhou marcas negativas e depois virou a rua onde ela pratica meditação, no centro budista do outro lado, toda quinta. A maioria dos seres que passam por ali vê apenas mais uma rua, não aquela do silêncio. E quem cruza o shopping para meditar não entende bem qual o sentido de dedicar um templo tão grande ao consumismo. Nesse sentido, o shopping e a sala de meditação não estão exatamente na rua: eles estão em nosso mundo interno. Vê quem tem olhos correspondentes.

Se não reconhecemos os ambientes mentais surgindo coemergentes aos espaços urbanos, deixamos a cidade nos oprimir, especialmente hoje em dia, habitando o que o antropólogo francês Marc Augé chama de “não-lugares”: aeroportos, rodovias, cadeias de hotéis, redes de fast-food, supermercados… Tais espaços desumanizados (não históricos, não identitários, não relacionais, indistintos em todos os cantos do planeta) são como um limbo: estamos suspensos, nem em casa nem no estrangeiro, nem sozinhos nem com outros. Neles, somos treinados a trombar com muita gente sem ver ninguém como pessoa. Precisamos circular, não podemos repousar, o que nos impede de tecer relações além da indiferença. Porque nosso mundo se estreita, mais facilmente jogamos lixo naquilo que não sentimos como sendo nosso, mais isolados nos sentimos.

Além de mudar as condições externas (políticas e arquitetônicas, por exemplo), um dos atos mais revolucionários é apenas andar destensionado, sem tanta pressa, com o olhar aberto em 180 graus, respirando e sabendo que está respirando, olhando nos olhos de quem passa por você.

Em vez de tratar seres humanos como obstáculos no metrô, você reconhece cada pessoa envolvida em seu próprio mundo. O cara no celular, a mulher sonolenta, o casal, os amigos com sacolas e mil expressões faciais… Todos buscando a mesmíssima felicidade, todos sem saber direito como. Muito próximos e incrivelmente distantes, como se fizessem um esforço, um pacto de não prestar atenção um no outro.

O que aconteceria se todo mundo acordasse no meio de um vagão no metrô, quebrasse a seriedade artificial e se olhasse de verdade? Como seria a cidade se conseguíssemos iluminar nossas cidades invisíveis?

Texto originalmente publicado na coluna “Quarta pessoa” da revista Vida Simples, em agosto de 2014 (edição 148, Especial Mobilidade).

Relacionado:

Áudio da palestra "Compaixão como princípio organizador do viver e do morrer"

Áudio da palestra "Compaixão como princípio organizador do viver e do morrer"