Para soltar nossa história pessoal

Para soltar nossa história pessoal
Nosso passado é sempre um filme

Algumas contemplações sobre como nos fixamos a narrativas que criam a sensação de termos um passado para carregar

Quando uma pessoa fala “Eu ainda estou muito presa ao passado”, é nesse exato momento que ela está se prendendo ao passado.

Antes de falar “Eu ainda estou muito presa ao passado”, ela não estava presa ao passado. Ao falar “Eu ainda estou muito presa ao passado” ela não chega realmente a se prender no passado. Depois de falar “Eu ainda estou muito presa ao passado” ela segue completamente livre do passado. O problema é que ela não para, ela não se dá tempo de perceber a mente operando, ela está ocupada demais costurando um evento ao outro, uma identidade à outra, repetindo, recontando mil narrativas como se referissem à mesma pessoa.

Não é que ela esteja de fato presa e um dia vá soltar. Basta que ela reconheça que “Eu ainda estou muito presa ao passado” não se refere a absolutamente nada que não a própria construção mental de se sentir presa ao passado, criada exatamente naquele momento, ao acreditar nessa fala como se ela se referisse a alguma outra coisa lá fora, alguma coisa bem sólida, real, existindo por si só há bastante tempo.


Quando você conta uma cena que aconteceu em 2003, a quem você se refere quando diz “eu”? Se você se refere a você agora, por que você está contando a história de outra pessoa como se fosse a sua? Se você se refere à pessoa de 2003, por que você diz “eu”?


Imagine que um amigo chegue para você assim:

“Cara, ontem eu vi um filme muito louco. Bem no fim da história eles deixaram 80 mil dólares debaixo do banco de uma escola. Você sabe onde fica essa escola? O problema é que tem outro cara procurando por esse dinheiro. E tenho uma relação super complicada com ele, não daria para dividirmos a grana. Você me ajuda?”

Qual seria sua reação? Isso parece uma completa loucura, não?

Nosso passado é como um sonho, como um filme. As pessoas em nosso passado são como fantasmas: hoje elas não são mais o que foram, mas nós nos relacionamos sutilmente como se elas fossem, lá fora, andando por aí, as mesmas que aparecem no espaço de nossa mente.


A diferença é que há uma causalidade adicional devido ao corpo: se nos cortamos no sonho, acordamos inteiros, mas se nos cortamos nessa vida, ficamos com uma cicatriz. Porém (e essa contemplação é crucial), a cicatriz é só uma cicatriz, ela não é em si mesma toda a história que levou ao corte.Podemos mostrar a cicatriz sorrindo para toda aquela loucura em vez de nos identificarmos (“Eu sou aquele que fez esse corte, vou te contar por que fiz isso e por que preciso ainda entender e superar isso e aquilo”).

É justamente nossa incessante urgência de resolver as coisas que sustenta o sofrimento de ter tantas coisas não resolvidas. Enquanto coçamos a ferida do braço direito com o braço esquerdo, reclamamos: “Essa ferida não para de sangrar!”.


Na hora da morte não vai dar tempo de fazer terapia para entender e superar cada ponto não resolvido. Claro, algumas conversas, resoluções, entendimentos nós vamos conseguir. Mas só isso é muito lento e limitado. Muito mais fácil será olhar para todos os seres e imediatamente, num estalar de dedos, ficar quite com todo mundo, sem nada a resolver, sem nada a entender, sem nenhuma questão pendente, como se olhássemos tudo como uma brincadeira já pacificada: foi como foi, do jeitinho mesmo que foi, e está tudo bem.


A história de nossa vida — cheia de dramas não resolvidos e questões a serem entendidas — não existe por si só: somos nós que a costuramos, somos nós que a soltamos.

Não é nem preciso soltar, como se ela existisse mesmo e depois ficasse em algum repositório de histórias abandonadas! É só parar de achar que ela existe como algo sólido e real. É só ver com clareza a história como história.Como história, quando não nos perdemos em seus conteúdos, ela não tem substancialidade alguma. É só uma história qualquer, igual ao conto de um mentiroso. Se você olhar bem, até mesmo “nossa”, “minha”, “sua” são imputações desnecessárias. Nossa história não é sequer nossa.


Claro, enquanto praticamos, essa clareza vai e vem. Mas é importante acessá-la mais e mais. Quanto falamos a partir daí, naturalmente usamos a linguagem convencional do “Eu fiz isso quando tinha 10 anos”, mas sem tanta identificação, trazendo nossas histórias não por nós, mas na medida em que é útil a quem encontramos, assim como trazemos exemplos de outras pessoas, de filmes, de livros.


Que todos os seres possam desfrutar dessa alegria!

Essas contemplações surgiram nos últimos tempos, ao ouvir muitas histórias em cafés por aí. Ainda não sei o quanto deixar isso meio descontextualizado num post pode ser benéfico e o quanto pode gerar ainda mais confusão. Para quem deseja aprofundar nesse ponto (e eventualmente praticar o caminho de visão, meditação e ação que resulta na liberação de toda e qualquer fixação), recomendo os ensinamentos de Lama Padma Samten sobre a redução do autointeresse e sobre a superação da linguagem da identidade (tem esse outro aqui também: o item 13 dos 14 conselhos do coração).